1.
uma mocinha, com uniforme de escola e mochila no colo, me ofereceu lugar no ônibus lotado. por um segundo, sem pensar muito, eu já ia aceitando, mas me ocorreu de perguntar se ela já estava descendo.
“não, não. mas pode sentar”.
geralmente, eu demoro pra entender as coisas, mas aqui eu entendi rapidamente o que estava acontecendo. a mocinha estava sendo educada e eu prontamente comecei a recusar a presteza. repeti, com o máximo de boa vontade, algumas vezes, que não precisava, que estava tudo bem.
“não precisa, está tudo bem.”
2.
talvez eu esteja ficando paranoico com essa coisa de envelhecer1. talvez a mocinha seja uma ex-aluna que eu não consigo reconhecer (cada vez mais comum2 ). talvez, ela estude em alguma escola onde trabalho/trabalhei e tenha me reconhecido. talvez, era o caso de ser sexta-feira depois do fim do expediente. talvez, o ângulo da iluminação bruxuleante do ônibus tenha enfatizado o tufo de cabelos brancos nas minhas laterais3 .
3.
não sei como é exatamente esse processo de envelhecer4, mas venho pensando nisso com a mesma frequência com que me irrito com qualquer coisa. talvez isso seja assim mesmo, eu não tinha/tenho como saber, afinal de contas essa é a primeira (e última) vez em que eu vou envelhecer, mas parece que algumas coisas são mais bem-vindas que outras.
4.
as bem-vindas:
o aumento da capacidade de não se surpreender com eventuais aborrecimentos;
o aumento da compreensão de que nem tudo e nem todo mundo é pra você;
o contato cada vez mais sólido com a realidade (embora a realidade não seja nada sólida).
as não tão bem-vindas:
a transformação de “aborrecimentos surpreendentes” em apenas “mais um aborrecimento”;
o limitante sentimento de que não dá pra fazer tudo, e a desconfortável sensação de ainda ter que conviver com todo mundo;
o contato cada vez mais sólido com a realidade (embora a realidade não seja nada sólida).
5.
ou seja, talvez tivesse sido uma boa ideia ter aceitado o lugar que mocinha, com uniforme de escola e mochila no colo, tinha me oferecido no ônibus.
talvez, esse tipo de paranoia seja coisa de velho.
também, uma coisa de velho.
já sabe, né.
estou me repetindo e isso é coisa de velho.
Se tem algo de positivo no pós pandemia (ja que a humanidade não melhorou mesmo!) foi o fato de parar de pintar meus cabelos embranquecidos precocemente. Não que minha velhice seja precoce apenas os cabelos começaram mais cedo...
Foi libertador parar de pintar a cada 15 dias e assumir meus platinados.
O engraçado é que muitos acham que sigo pintando e que descolori as mechas....
'primeira e última vez que a gente vai envelhecer'.
pegou pesado, hein! bateu o peso da crise existencial dessa frase e até balançou meu café.